Parashat Bo/Behar – A contradição de celebrar a liberdade, tendo escravos.

No livro “Destination Torah” (Ktav, 2001), páginas 62 a 64, o Dr rabino Hacham Issac S.D. Sassoon, nota que, se a escravidão é para ser considerado algo inerentemente perverso, por qual motivo lemos que, na partida dos Israelitas de um Egito que os escravizava, eles recebem instruções sobre como tratar seus escravos, inclusive, na celebração do Pessah?

A promulgação de tais instruções, justo naquele momento, certamente quebra o encanto de se construir uma nação utópica, perfeita e contrária a escravização de outros seres humanos.

De fato, estas “leis de escravizados” não deixam dúvida sobre a prática ter sido considerada normal e aceitável. Mas, então, por qual motivo os Egípcios foram retratados como “maus” por escravizarem os Israelitas? Era só por uma questão de “meu time” versus o “time” do outro?

Neste caso, não se trata de ser “imoral” escravizar, mas apenas, não escravizar certos grupos (o nosso, no caso)?

A Lei do Pessah que menciona escravos

O verso complicado é de Shemot 12 : 43 :

(מג) וַיֹּ֤אמֶר יְהֹוָה֙ אֶל־מֹשֶׁ֣ה וְאַהֲרֹ֔ן זֹ֖את חֻקַּ֣ת הַפָּ֑סַח כׇּל־בֶּן־נֵכָ֖ר לֹא־יֹ֥אכַל בּֽוֹ׃ (מד) וְכׇל־עֶ֥בֶד אִ֖ישׁ מִקְנַת־כָּ֑סֶף וּמַלְתָּ֣ה אֹת֔וֹ אָ֖ז יֹ֥אכַל בּֽוֹ׃ (מה) תּוֹשָׁ֥ב וְשָׂכִ֖יר לֹא־יֹ֥אכַל בּֽוֹ׃

HaShem disse a Moshe e a Aharon: Este é o estatuto do Pessa’h: Nenhum estrangeiro comerá dele! E qualquer escravo, comprado com prata, que vocês tiverem circuncidado, poderá comer. Mas, nenhum cativo ou trabalhador contratado poderá comer!

Daí a porção continua, com outras leis relacionadas a Oferta de Pessah, terminando em Shemot 12 : 50 :

(נ) וַיַּֽעֲשׂ֖וּ כׇּל־בְּנֵ֣י יִשְׂרָאֵ֑ל כַּאֲשֶׁ֨ר צִוָּ֧ה יְהֹוָ֛ה אֶת־מֹשֶׁ֥ה וְאֶֽת־אַהֲרֹ֖ן כֵּ֥ן עָשֽׂוּ׃ {ס}

Todos os filhos de Israel fizeram, como o HaShem havia ordenado a Moshe e a Aharon. Isso é o que fizeram.

Então, de acordo com esta porção, os Israelitas não eram permitidos de sair de seu local, antes de consentirem que a escravidão continuaria!

E se o verso 50 for lido literalmente – já que o Dr rabino Sassoon observou que, ao lermos a Torá de modo sincronístico, notamos que os Mandamentos que o verso 50 reportam aos Israelitas, deve se referir aos indicados nos versos 43 a 49, e o que eles observaram antes, foram relatados no verso 28 -, eles então nem poderiam sair antes de adquirir escravos e os circuncidar.

Doutro modo, não haveria nem sentido em mencionar tais instruções logo durante a saída do Egito! Se ninguém iria adquirir escravos, tais regras simplesmente não serviriam para nada.

Então, o problema dos Egípcios não era a escravização em si, mas só o fato de que israelitas foram escravizados? Ou seja, com outros povos, estaria tudo bem?

As noções religiosas sobre a Torá fazem o problema persistir

É fácil constatar que, estas conclusões são consistentes com premissas sobre a Torá que são consideradas, sem o devido questionamento:

  • - A Torá, como um texto homogêneo, em vez de, uma composição de variadas tradições de tempos e locais distintos.
  • - Um texto magicamente “ditado” pela Divindade
  • - Um documento dado a “Israel” e apresentado por um Moshe “histórico”, cerca de 40 anos após o êxodo.

Porém, conforme a educação melhora, o conhecimento da História, da Arqueologia e, análise crítica da Torá permitem a mais e mais pessoas perceberem que, tais doutrinas religiosas são contra intuitivas.

Por acaso a Torá realmente desvalorizaria o ser e a dignidade humana, apenas por causa de interesses políticos? Ou seja, que permitiria a escravização, se fosse de outros povos, enquanto proibiria a de israelitas? Um livro assim, seria mesmo “divino”?

A elucidação acadêmica

Para aqueles que descobriram que a análise crítica apenas “fere” as noções, doutrinas e regras religiosas que, por si só, já ofendem a inteligência e o bom senso cultivado no século XXI; Sem com isso diminuir a importância da Torá ou dos antigos textos tradicionais da Tradição Judaica, a análise acadêmica, como a Hipótese Documental e a Hipótese Complementar, não apenas aliviam certas contradições, como conseguem em muitos casos, resolver de modo inteligente e satisfatório, os conflitos morais.

Uma das fontes tradicionais mais antigas – chamada de “não-P” - traz uma narrativa do êxodo, que não menciona, nem uma única vez, que os israelitas tivessem “licença” para escravizar – bastando seguir certas regras – e, não receberam instrução alguma de fazer isso, na ocasião de sua própria libertação.

Isso contrasta com Shemot 12 : 43 – 51, que exibe sinais linguísticos e substantivos de que, fazem parte exclusivamente, de um material sacerdotal, muito posterior ao período indicado na narrativa. A tradição P – Sacerdotal.

Os Sinais Sacerdotais

Estes sinais, incluem a “proeminência estereotipada”, exemplificada em frases como: “HaShem falou a Moshe/a Moshe e Aharon, dizendo” e, em seguida, trazendo insistência em rituais como o da circuncisão, ritual de elevação do status e da ideia de pacto, característico e próprio, apenas na Tradição P.

De fato, o verso 47, que ordena que “toda a congregação” - e não apenas os “anciãos” iniciem os rituais de Pessah, parece estar polemizando com versões mais antigas do processo, encontradas em Shemot 12 : 21 :

Texto Não-P – verso 21

(כא) וַיִּקְרָ֥א מֹשֶׁ֛ה לְכׇל־זִקְנֵ֥י יִשְׂרָאֵ֖ל וַיֹּ֣אמֶר אֲלֵהֶ֑ם מִֽשְׁכ֗וּ וּקְח֨וּ לָכֶ֥ם צֹ֛אן לְמִשְׁפְּחֹתֵיכֶ֖ם וְשַׁחֲט֥וּ הַפָּֽסַח׃

Moshe chamou todos os anciãos de Israel e disse a eles, para irem e tomarem o carneiro para a família de vocês, e que o abatessem para o Pessah

Texto Sacerdotal – P - verso 47

(מז) כׇּל־עֲדַ֥ת יִשְׂרָאֵ֖ל יַעֲשׂ֥וּ אֹתֽוֹ׃

Toda a congregação de Israel fará isso [o Pessah]

Então, de acordo com a fonte Não-P, eram apenas os Anciãos, que deveriam realizar o ritual do Pessah – uma versão bem mais realista, dado que na narrativa estamos falando de uma população escravizada.

A “massa” de israelitas, provavelmente não estava vivendo entre vizinhos queridos neste período, então a versão da história da tradição Não-P, se encaixa muito melhor na narrativa.

Claro que alguns “apologistas” propõem traduzir <adat> da frase <kol adat Israel> como se fosse simplesmente, “líderes” - com base na ideia de que, <edah> em Bamidbar 15 : 24, 26 : 10 e 35 : 24 teriam tal sentido.

No entanto, mesmo que concedamos o sentido de 'liderança' nessas ocorrências de <edah>, isso não afetaria o sentido da frase <kol adat Israel>, que invariavelmente conota “todo o povo”, não apenas os líderes. Além disso, Shemot 12 : 3 e especialmente 12 : 6, que também pertencem a tradição P, não deixam dúvidas de que, se refere a toda comunidade. Portanto, a “apologética” é fraca.

A atitude característica da tradição P sobre a escravatura

Agora que, consideramos a mais provável origem do texto de nossa Torá que, sem rodeios, estaria apoiando a escravatura, estamos prontos para nos aprofundar nesta questão, sobre a atitude da tradição P sobre a escravidão. Esta atitude da tradição Sacerdotal se encaixa num padrão, na verdade. Vejamos:

Razões para o Shabat – duas tradições, dois motivos

O motivo pelo qual o Shabat é observado, não é o mesmo no Sefer Devarim e no Sefer Shemot

Em Shemot 20 : 8 a 11 :

(ח) זָכ֛וֹר֩ אֶת־י֥֨וֹם הַשַּׁבָּ֖֜ת לְקַדְּשֽׁ֗וֹ׃ (ט) שֵׁ֤֣שֶׁת יָמִ֣ים֙ תַּֽעֲבֹ֔ד֮ וְעָשִׂ֖֣יתָ כׇּֿל־מְלַאכְתֶּֽךָ֒׃ (י) וְי֨וֹם֙ הַשְּׁבִיעִ֔֜י שַׁבָּ֖֣ת ׀ לַיהֹוָ֣ה אֱלֹהֶ֑֗יךָ לֹֽ֣א־תַעֲשֶׂ֣֨ה כׇל־מְלָאכָ֜֡ה אַתָּ֣ה ׀ וּבִנְךָ֣͏ֽ־וּ֠בִתֶּ֗ךָ עַבְדְּךָ֤֨ וַאֲמָֽתְךָ֜֙ וּבְהֶמְתֶּ֔֗ךָ וְגֵרְךָ֖֙ אֲשֶׁ֥֣ר בִּשְׁעָרֶֽ֔יךָ׃ (יא) כִּ֣י שֵֽׁשֶׁת־יָמִים֩ עָשָׂ֨ה יְהֹוָ֜ה אֶת־הַשָּׁמַ֣יִם וְאֶת־הָאָ֗רֶץ אֶת־הַיָּם֙ וְאֶת־כׇּל־אֲשֶׁר־בָּ֔ם וַיָּ֖נַח בַּיּ֣וֹם הַשְּׁבִיעִ֑י עַל־כֵּ֗ן בֵּרַ֧ךְ יְהֹוָ֛ה אֶת־י֥וֹם הַשַּׁבָּ֖ת וַֽיְקַדְּשֵֽׁהוּ׃ {ס}

Lembra-te do dia de Shabat, para santificá-lo. Seis dias você fará toda tua obra, mas o sétimo dia é um Shabat para o HaShem, teu Elohim: Não fará nele, nenhuma obra – nem você, teu filho ou filha, teu escravo ou escrava, nem teu gado ou, o estrangeiro que estiver dentro de seus assentamentos. Pois, em seis dias, HaShem fez os céus, a terra e o mar e tudo o que há neles. E Ele cessou no sétimo dia e, portanto, HaShem abençoou o Shabat e o santificou.

(יב) שָׁמ֛֣וֹר אֶת־י֥וֹם֩ הַשַּׁבָּ֖֨ת לְקַדְּשׁ֑֜וֹ כַּאֲשֶׁ֥ר צִוְּךָ֖֣ ׀ יְהֹוָ֥֣ה אֱלֹהֶֽ֗יךָ׃ (יג) שֵׁ֤֣שֶׁת יָמִ֣ים֙ תַּֽעֲבֹ֔ד֮ וְעָשִׂ֖֣יתָ כׇּֿל־מְלַאכְתֶּֽךָ֒׃ (יד) וְי֨וֹם֙ הַשְּׁבִיעִ֔֜י שַׁבָּ֖֣ת ׀ לַיהֹוָ֣ה אֱלֹהֶ֑֗יךָ לֹ֣א תַעֲשֶׂ֣ה כׇל־מְלָאכָ֡ה אַתָּ֣ה וּבִנְךָֽ־וּבִתֶּ֣ךָ וְעַבְדְּךָֽ־וַ֠אֲמָתֶךָ וְשׁוֹרְךָ֨ וַחֲמֹֽרְךָ֜ וְכׇל־בְּהֶמְתֶּ֗ךָ וְגֵֽרְךָ֙ אֲשֶׁ֣ר בִּשְׁעָרֶ֔יךָ לְמַ֗עַן יָנ֛וּחַ עַבְדְּךָ֥ וַאֲמָתְךָ֖ כָּמֽ֑וֹךָ׃ (טו) וְזָכַרְתָּ֗֞ כִּ֣י־עֶ֤֥בֶד הָיִ֣֙יתָ֙ ׀ בְּאֶ֣רֶץ מִצְרַ֔֗יִם וַיֹּצִ֨אֲךָ֜֩ יְהֹוָ֤֨ה אֱלֹהֶ֤֙יךָ֙ מִשָּׁ֔ם֙ בְּיָ֥֤ד חֲזָקָ֖ה֙ וּבִזְרֹ֣עַ נְטוּיָ֑֔ה עַל־כֵּ֗ן צִוְּךָ֙ יְהֹוָ֣ה אֱלֹהֶ֔יךָ לַעֲשׂ֖וֹת אֶת־י֥וֹם הַשַּׁבָּֽת׃ {ס}

Observe o dia de Shabat e o mantenha consagrado, como HaShem, teu Elohim te ordenou. Seis dias trabalhará e fará toda tua obra. Mas, o sétimo dia é um Shabat para o HaShem, teu Elohim, você não fará obra alguma – nem você, nem seu filho ou filha, nem seu escravo ou escrava, nem teu boi ou asno, nenhum dos teus rebanhos, ou o estrangeiro que estiver em teus assentamentos – de tal modo que teu escravo e escrava, possam descansar como você! Lembre-se que vocês eram escravos na Terra do Egito e o HaShem, teu Elohim, os libertou de lá, com sua mão poderosa e braço estendido; portanto, o HaShem, teu Elohim, ordenou a você que observasse o dia de Shabat.

Como se vê, a declaração de Devarim contém a frase “para que teu escravo e tua escrava, possam descansar como você”, e explica a origem do ritual, na memória de que os Israelitas foram escravos no Egito.

A declaração de Shemot não diz nada disso. Ela fala sobre o Shabat ser uma lembrança semanal, da concepção de que a Divindade criou o mundo.

Comentaristas Medievais todos correram para explicar estas inconsistências, que não deveriam existir num texto tão fundamental, como o Decálogo – ou seja, o texto resultante da única revelação pública.

Mas, o estudo acadêmico pós-moderno, aprecia tais características. Elas indicam com bastante clareza, que estas versões representam expansões de um “Decálogo Original”, cujos “mandamentos” devem ser sido muito mais breves e apodíticos (ou seja, curtos), de meados do século 6 a 9 antes da era comum.

Dizer que o texto da Torá não foi alterado, com o passar do tempo chega a ser infantil hoje em dia, pois, até fontes tradicionais como Ibn Ezra, tinham noções disso. Então, é só uma questão de ir fundo no tema ou não, para definir as fontes e a linguagem de cada tradição. E este é um dos temas do estudo acadêmico.

A versão “expandida” do Decálogo de Devarim, seria a mais “antiga” por assim dizer, sendo o precursor do texto de Shemot.

[Frank-Lothar Hossfeld, Der Dekalog (Gőttingen 1982 esp. pp. 39-42, 57).]

O paralelo da fonte de Shemot, com os finais épicos, típicos da fonte tradicional P (Bereshit 2: 2 – 3) sugere que, esta versão do Decálogo, pelo menos na forma em que está agora, é mesmo de origem Sacerdotal. Assim, notamos que a tradição P foi a responsável, por substituir o motivo de dar ao escravo descanso, com o motivo da “lembrança da criação” (já que a tradição P poderia ter mantido os dois temas no texto, mas não manteve).

Não se pode saber o exato motivo pelo qual, os editores da tradição P rejeitaram a premissa mantida pelo Sefer Devarim. De qualquer modo, é provável que a tradição P estivesse menos preocupada com a situação de escravos, do que os editores da tradição D estavam.

A Lei Sacerdotal sobre Escravizados

Existe uma insensibilidade evidente, com relação a escravizados não israelitas, no texto de Vaicrá 25 : 44 a 46 de tradição P. A lei que segue a obrigação de se libertar todos os escravizados israelitas, no ano do Iovel, diz:

(מד) וְעַבְדְּךָ֥ וַאֲמָתְךָ֖ אֲשֶׁ֣ר יִהְיוּ־לָ֑ךְ מֵאֵ֣ת הַגּוֹיִ֗ם אֲשֶׁר֙ סְבִיבֹ֣תֵיכֶ֔ם מֵהֶ֥ם תִּקְנ֖וּ עֶ֥בֶד וְאָמָֽה׃ (מה) וְ֠גַ֠ם מִבְּנֵ֨י הַתּוֹשָׁבִ֜ים הַגָּרִ֤ים עִמָּכֶם֙ מֵהֶ֣ם תִּקְנ֔וּ וּמִמִּשְׁפַּחְתָּם֙ אֲשֶׁ֣ר עִמָּכֶ֔ם אֲשֶׁ֥ר הוֹלִ֖ידוּ בְּאַרְצְכֶ֑ם וְהָי֥וּ לָכֶ֖ם לַֽאֲחֻזָּֽה׃ (מו) וְהִתְנַחַלְתֶּ֨ם אֹתָ֜ם לִבְנֵיכֶ֤ם אַחֲרֵיכֶם֙ לָרֶ֣שֶׁת אֲחֻזָּ֔ה לְעֹלָ֖ם בָּהֶ֣ם תַּעֲבֹ֑דוּ וּבְאַ֨חֵיכֶ֤ם בְּנֵֽי־יִשְׂרָאֵל֙ אִ֣ישׁ בְּאָחִ֔יו לֹא־תִרְדֶּ֥ה ב֖וֹ בְּפָֽרֶךְ׃ {ס}

Com respeito aos homens e às mulheres que vocês tiverem por escravos; comprem escravos e escravas das nações vizinhas. Comprem também filhos de estrangeiros que vivem com vocês e membros das famílias deles, nascidos em sua terra; eles pertencerão a vocês. Vocês poderão também legá-los a seus filhos; desses grupos, vocês poderão comprar escravos para sempre. Entretanto, no que concerne a seus irmãos, o povo de Israel, não tratem um ao outro de modo rude.

Por que o autor Sacerdotal está tão interessado em escravizar não-israelitas?

Embora certa quantidade de preconceito, ou de “pensamento de manada” estabelecendo quem era de “dentro / fora” do grupo, não possa ser descartada numa análise dessas (em vez de atribuir à Divindade a ideia de ter “tribos e grupos”), acredita-se que a chave, para entender a atitude dos redatores da tradição P, pode ser encontrada na frase "... Vocês poderão também legá-los a seus filhos; desses grupos".

Quer dizer, essa legislação de tradição P, pressupõe que os israelitas estivessem escravizando uns aos outros e, estava tentando parar a prática que, pelo visto, era generalizada.

As palavras no início, soam como uma resposta - muito provavelmente aos proprietários de terras - protestando que os escravos eram indispensáveis para a agricultura sobreviver e etc.

Em outras palavras, o provável pano de fundo desta “licença” dada pela tradição P, de se escravizar não-israelitas, pode ser visto como uma tentativa de negociar com os proprietários de terras influentes da região, a fim de obter a garantia de que, pelo menos os israelitas não seriam mais escravizados na região, permanentemente.

Talvez então, a tradição P estivesse enfrentando uma situação semelhante à descrita no Sefer Nehemiah 5 : 1 a 5 - outro texto pós-exílico antigo - em que as pessoas comuns, levantam “um grande clamor” - um protesto - contra seus irmãos judeus, dizendo que estavam “dando” seus filhos e filhas, como promessas de dívidas, enquanto outros eram levados até a literalmente, vender seus filhos como escravos – por causa da opressão de “irmãos Judeus”:

(א) וַתְּהִ֨י צַעֲקַ֥ת הָעָ֛ם וּנְשֵׁיהֶ֖ם גְּדוֹלָ֑ה אֶל־אֲחֵיהֶ֖ם הַיְּהוּדִֽים׃ (ב) וְיֵשׁ֙ אֲשֶׁ֣ר אֹמְרִ֔ים בָּנֵ֥ינוּ וּבְנֹתֵ֖ינוּ אֲנַ֣חְנוּ רַבִּ֑ים וְנִקְחָ֥ה דָגָ֖ן וְנֹאכְלָ֥ה וְנִחְיֶֽה׃ (ג) וְיֵשׁ֙ אֲשֶׁ֣ר אֹמְרִ֔ים שְׂדֹתֵ֛ינוּ וּכְרָמֵ֥ינוּ וּבָתֵּ֖ינוּ אֲנַ֣חְנוּ עֹרְבִ֑ים וְנִקְחָ֥ה דָגָ֖ן בָּרָעָֽב׃ (ד) וְיֵשׁ֙ אֲשֶׁ֣ר אֹמְרִ֔ים לָוִ֥ינוּ כֶ֖סֶף לְמִדַּ֣ת הַמֶּ֑לֶךְ שְׂדֹתֵ֖ינוּ וּכְרָמֵֽינוּ׃ (ה) וְעַתָּ֗ה כִּבְשַׂ֤ר אַחֵ֙ינוּ֙ בְּשָׂרֵ֔נוּ כִּבְנֵיהֶ֖ם בָּנֵ֑ינוּ וְהִנֵּ֣ה אֲנַ֣חְנוּ כֹ֠בְשִׁ֠ים אֶת־בָּנֵ֨ינוּ וְאֶת־בְּנֹתֵ֜ינוּ לַעֲבָדִ֗ים וְיֵ֨שׁ מִבְּנֹתֵ֤ינוּ נִכְבָּשׁוֹת֙ וְאֵ֣ין לְאֵ֣ל יָדֵ֔נוּ וּשְׂדֹתֵ֥ינוּ וּכְרָמֵ֖ינוּ לַאֲחֵרִֽים׃

Então, surgiu um grande clamor do povo comum e de suas mulheres contra seus irmãos, os habitantes de Iehudá (i.e. os Iehudaítas). Alguns deles disseram: “contem nosso filhos e filhas, somos muitos! Deixem-nos conseguir trigo para eles, para que comamos e permaneçamos vivos”. Havia também alguns que disseram, “demos como garantia, nosso campos, nossas vinhas e casas, a fim de comprar trigo, por causa da fome”. Ainda outros disseram: “Tomamos dinheiro emprestado para o pagamento das taxas reais sobre nossos campos e vinhas. Nossa carne não é diferente da carne de nossos parentes, e nossos filhos são iguais aos filhos deles; entretanto, estamos trazendo nossos filhos e filhas para a escravidão. Algumas de nossas filhas já se tornaram escravas, e está além de nosso poder fazer qualquer coisa a respeito disso, pois outros homens possuem nossos campos e vinhas”.

Não resta dúvida de que, a reação da tradição P e Nehemiah são parecidas, dado que o texto não está condenando “a escravidão em si” mas, apenas a escravidão dentro das comunidades israelitas. Escravizar não israelitas era tolerado.

Conclusão

Esta aprovação da tradição P sobre escravizar não israelitas, parece ter sido uma tentativa de solucionar uma crise social, que parecia ameaçar até a comunidade pós exílica. E a menção da tradição P de tal escravização, como um elemento de sua versão da história do êxodo, provavelmente, deve ser entendida como parte dessa circunstância histórica.

Mas, como deu para perceber, esta não é uma visão adotada de outras fontes tradicionais da Torá, como vimos no exemplo da tradição do Sefer Devarim, que tentou “melhorar” a questão, por dizer que se deveria dar aos escravos o descanso, sendo este o motivo do Shabat ter sido estabelecido.

Mas, melhores do que isto, foram as palavras de um profeta anônimo, cujo ensino foi perpetuado no manuscrito de Ieshaiahu, capítulo 58 : 6, exigindo da parte dos israelitas, completa abolição da escravatura:

(ו) הֲל֣וֹא זֶה֮ צ֣וֹם אֶבְחָרֵ֒הוּ֒ פַּתֵּ֙חַ֙ חַרְצֻבּ֣וֹת רֶ֔שַׁע הַתֵּ֖ר אֲגֻדּ֣וֹת מוֹטָ֑ה וְשַׁלַּ֤ח רְצוּצִים֙ חׇפְשִׁ֔ים וְכׇל־מוֹטָ֖ה תְּנַתֵּֽקוּ׃

(6) Não, este é o jejum que desejo: Para destrancar os grilhões da maldade, E desamarra as cordas do jugo - Para deixar os oprimidos irem livres; Para quebrar todo jugo.