Rosh Hashanah 34a ~ Sobre o uso da urina?

Ontem, quem acompanha a tradução do Daf Iomi aqui no Beit Midrash Livre, leu uma Mishná que falou a respeito da ideia de que, a qualidade de um shofar poderia ser melhorada por imersão em vinho ou água. Daí o assunto continua, do seguinte modo:

ראש השנה לד, א

וְאֵין חוֹתְכִין אוֹתוֹ — בֵּין בְּדָבָר שֶׁהוּא מִשּׁוּם שְׁבוּת, וּבֵין בְּדָבָר שֶׁהוּא מִשּׁוּם לֹא תַעֲשֶׂה. אֲבָל אִם רָצָה לִיתֵּן לְתוֹכוֹ מַיִם אוֹ יַיִן — יִתֵּן

§ A mishná continua: No entanto, se a pessoa deseja água local ou vinho para o shofar em Rosh HaShanah, para que emita um som claro, ele poderia colocar. A Guemará infere: Água ou vinho, sim, se poderia inserir essas substâncias em um shofar.

אֲבָל אִם רָצָה לִיתֵּן לְתוֹכוֹ מַיִם אוֹ יַיִן — יִתֵּן. מַיִם אוֹ יַיִן — אֵין, מֵי רַגְלַיִם — לָא

No entanto, urina, cuja acidez era considerada também boa para desentupir um shofar, não.

Portanto, a Mishná determina que um shofar poderia ser banhado em água e vinho, porque isso ajudaria a emitir um som mais claro. Mas a urina, não poderia ser usada para melhorar a qualidade do shofar, porque, como Aba Shaul continua a ensinar:

מַתְנִיתִין מַנִּי — אַבָּא שָׁאוּל הִיא. דְּתַנְיָא, אַבָּא שָׁאוּל אוֹמֵר: מַיִם אוֹ יַיִן — מוּתָּר, כְּדֵי לְצַחְצְחוֹ. מֵי רַגְלַיִם — אָסוּר, מִפְּנֵי הַכָּבוֹד.

A Guemará pergunta: Quem é o taná da mishná? A Guemará responde: É Aba Shaul, como é ensinado em um baraita que Aba Shaul disse: Com relação à água ou vinho, seria permitido derramar esses líquidos em um shofar no Rosh HaShanah para tornar seu som claro. Porém, no que se refere à urina, seria proibido fazer o mesmo, devido ao respeito que deve ser demonstrado ao shofar. Apesar de ser considerado funcional, era considerado desrespeitoso pelo Shofar ser usado numa mitzvá.

Ok, tudo bem.

Mas a lição do Aba Shaul é apenas o começo da história, sobre algo pouco conhecido por muitas pessoas.

A antiga ideia das propriedades benéficas da urina no mundo antigo. Sim, o período antigo da história da humanidade via a urina como algo muito benéfico. E isso continuou por séculos. Vamos então, nos informar um pouco mais sobre esta realidade esquecida.

Urina é um subproduto líquido do corpo, tipicamente estéril (na ausência de doenças), secretada pelos rins, depositada na bexiga e excretado pela uretra. O metabolismo celular gera vários subprodutos, muitos ricos em nitrogênio, que precisam ser eliminados da corrente sanguínea. Estes subprodutos são eventualmente expelidos do corpo em um processo conhecido como micção, o método primário para excretar do corpo substâncias químicas solúveis em água. Estas substâncias químicas podem ser analisadas por uranálise. É uma forma de limpar o organismo liberando gorduras, sais e outros.

Nos mamíferos, a urina é um fluido excretório resultante da filtragem do sangue nos rins. Nas aves e nos répteis é uma excreção sólida ou semi-sólida.

A urina é constituída pela filtração do plasma com posterior reabsorção dos nutrientes ainda presentes no mesmo, pelo túbulo proximal. A filtração é feita nos néfrons, que obtém uma parede, um tubo, que é chamado de túbulo, o qual é rodeado de vasos sanguíneos, que sugam os nutrientes que o organismo precisa, para depois ir para os ureteres, para a bexiga para ser armazenada, e passada para a uretra para finalmente ser expelida.

-Wikipedia

NÃO TRAZEMOS URINA PARA O AZARAH (PÁTIO DO TEMPLO)

Na famosa Mishná conhecida como Pitum Haketoret, que descreve a preparação do incenso no Templo, há uma lista complicada de onze ingredientes. Infelizmente, não é todo mundo que lê o texto com a devida atenção, mesmo os que leem todos os dias.

E então, quem lê com atenção conta a seguinte parte:

יֵין קַפְרִיסִין שֶׁשּׁוֹרִין בּוֹ אֶת הַצִּפּוֹרֶן. כְּדֵי שֶׁתְּהֵא עַזָּה. וַהֲלֹא מֵי רַגְלַיִם יָפִין לָהּ, אֶלָּא שֶׁאֵין מַכְנִיסִין מֵי רַגְלַיִם בַּמִּקְדָּשׁ מִפְּנֵי הַכָּבוֹד׃

Por que o vinho de Chipre era usado? Para embeber a onicha para torná-la mais picante. Embora a urina pudesse ser adequada para esse propósito, não era decente trazê-la para o Templo.

Esta Mishná, que é recitada todos os dias pela maioria dos sefarditas (e muitos serviços Ashkenazi em Israel) explica que, tal qual seu uso para o shofar em nosso Daf, a urina era considerada boa para melhorar a qualidade de alguns itens do Templo, mas, independentemente disso, “não seria decente trazê-la para Templo”, para esse propósito.

Mas, quais seriam as propriedades da urina, que às vezes a tornaria útil?

SEFER MASHIA HOSSIM

O judeu italiano chamado Abraham ben Hananiah Yagel (viveu de 1553 a 1624) foi, por qualquer definição, um polímata.

Suas obras incluem não uma, mas duas longas enciclopédias, um manual de crenças - audaciosamente adaptado de um manual católico” (sim, isso mesmo!) e uma obra inusitada de "louvor às mulheres".

Mas Yagel foi antes de tudo um médico em sua época, e foi nessa função que em 1587 ele publicou sua primeira obra, um pequeno tratado sobre pragas chamado Mashia Hossim ( O Salvador daqueles que procuram refúgio ).

O Sefer Mashia Hossim começa com uma declaração que era tanto "teológica" quanto médica (na época):

“Todo sábio entende que o mundo se divide em três reinos: o elementar, o divino e o intelectual. Cada parte do mundo inferior é movida e influenciada pelo superior, como os rabinos declararam no Bereshit Rabah : Não há lâmina de grama que balance, sem que seja controlada por uma constelação, que o direciona para crescer”.

As origens de qualquer praga, portanto, dependem das interações precisas desses três reinos. As estrelas e constelações causariam a liberação de "ar fétido e venenoso", "pois nada acontece na terra sem a influência dos céus".

Embora algumas pragas sejam uma punição divina pelo pecado, essas eram de natureza fundamentalmente diferente das outras. Pragas divinamente enviadas se fixaram repentinamente e não deixam nenhuma marca física em sua vítima, ao contrário de surtos que ocorrem “naturalmente”.

Mas, quaisquer que sejam suas origens celestiais, certos grupos, como mulheres e crianças, são mais vulneráveis ​​por causa de seu "desequilíbrio" humoral, assim como jovens adultos naturalmente bonitos...

Yagel, como a maioria de seus contemporâneos médicos, imaginava que qualquer agente que causasse uma praga, poderia ser transmitido por meio de contato físico próximo. Ele cita as ações de três sábios talmúdicos que tomavam cuidado para evitar que fossem picados por moscas, durante uma pandemia, ou que não compartilhavam comida ou contato próximo, com uma vítima “pois moscas e pássaros transmitem doenças de pessoa para pessoa”.

Yagel prescrevia uma dieta livre de alimentos gordurosos e aconselhava que se evitasse relações sexuais, pois isso levava à perigosa condição de superaquecimento...

Ele também recomendava a "teréria", uma mistura medieval de ervas que se pensava ser um antídoto para todos os tipos de venenos e doenças.

“Não tema o calor provocado pela terapia”, escreveu ele, “pois em pequenas doses diluídas não pode fazer mal a ninguém”.

Segundo ele, o paciente deveria se vestir com roupas limpas e confortáveis, “pois estimulam o tato” e deveria estar rodeado de lençóis embebidos em uma mistura de vinagre e teréria, além de flores frescas e rosas perfumadas, “pois elevam os espíritos dos doentes.”

Da mesma forma, a casa deveria estar sempre limpa, arejada e adornada com desenhos "que faziam o coração feliz".

A melhor época para realizar a sangria (muito comum naquela época) dependeria da tez do paciente: os morenos deveriam fazer o procedimento ao amanhecer, os pálidos à meia-noite, e o sangue deveria ser retirado do mesmo lado dos bubões.

Independentemente de quando fosse realizado, o paciente deveria primeiro tomar um laxante.

E então há este conselho no livro:

E há a coisa incrível mencionada no primeiro capítulo do tratado Kerissut, que afirma

"...e a urina é boa para isso (o incenso do Templo)"

Além disso, aqueles que aprenderam sobre a natureza, ensinaram que é útil e bom tirar a urina de um menino jovem, bonito e saudável, e bebê-la todas as manhãs...

Isso filtrará o ar nocivo (que causa a pragas).

Agora, alguns podem usar isso como evidência de que os rabinos da era pós-talmúdica não tinham ideia sobre a medicina do mundo antigo. Da Mecidina moderna, eles não sabiam é verdade; mas da medicina do mundo antigo, eles sabiam bem.

O que nosso Daf ensina que - para surpresa de muitos - aqueles antigos sábios estavam em dia com o pensamento médico, mesmo em séculos depois - ainda que, pelos nossos padrões pós modernos, o pensamento elaborado estivesse totalmente errado.

TODOS NAQUELA ÉPOCA RECOMENDAVAM BEBER URINA

Quem estuda a história da medicina, passa pelo historiador médico alemão Karl Sudhoff (1853-1938) fez carreira, estudando quase 300 textos de pragas do início da Idade Média.

Ele observou que em um tratado latino sobre saúde escrito em 1405, “pacientes mais velhos que às vezes eram aconselhados a beber a urina fresca de um menino podem (compreensivelmente) sentir um pouco de náusea”.

Sim, isso mesmo.

E no excelente livro recentemente publicado Doctoring the Black Death , John Aberth, que parece saber tudo sobre a reação médica da Europa medieval à peste, escreveu que como uma alternativa à terapia chamada Teriaga, aquela mistura ancestral que deveria prevenir e curar todo e qualquer tipo de doença, as pessoas bebiam urina.

Por exemplo, em 1378, Cardo de Milão prescreveu uma "poção": "para os pobres que combinavam a própria urina do paciente com mostarda, óleo de rícino, romã, zimbro, sálvia e avermelhada, e que deveria ser fervida, clarificada e coada, então tomada pela manhã e noite, cinco colheres de cada vez. (205)”

E um médico italiano chamado Dionysus Secundus Colle que se recuperou da peste por volta de 1348 disse o seguinte (248):

Eu vi mulheres colhendo caracóis e capturando lagartos e salamandras, que afirmaram que, uma vez que todos fossem queimados até virar pó ... eles administraram duas dracmas na urina de um menino, e eles curaram e perseveraram muitos, e depois disso eu fui compelido a investigar [isso eu mesmo] e depois curei muitos.

Portanto, acreditava-se mesmo, que a urina tinha muitas propriedades úteis. E não eram só os sábios do Talmud!

A ideia que urina ajudava o tom do shofar , melhorava o incenso de Templo e já foi considerada até uma cura para a peste não era nada estranha, no mundo antigo.

Mesmo assim, é improvável que usemos de qualquer uma dessas formas primitivas, exceto é claro, se os sistemas autoritários da religião voltarem a controlar todos os Governos... (חס וחלילה)

Na época do sábio Aba Shaul isso provavelmente era considerado uma coisa boa. Mas, quanto a hoje, tenho minhas dúvidas....