Taanit 11 - Intimidade durante uma Pandemia

De todas propostas feitas a rabinos durante a pandemia de COVID-19, uma foi surpreendentemente pessoal:

Um marido e mulher, poderiam ter relações sexuais durante a Pandemia?

A pergunta seria baseada numa premissa fundamentada no Talmud, e tal premissa pode ser encontrada na página de hoje.

De acordo com o sábio do século III, Reish Lakish: “é proibido a uma pessoa ter relações conjugais em anos de fome ... no entanto, aqueles que ainda não tivessem filhos, poderiam ter relações conjugais em anos de fome”:

תענית יא, א

אָמַר רֵישׁ לָקִישׁ: אָסוּר לְאָדָם לְשַׁמֵּשׁ מִטָּתוֹ בִּשְׁנֵי רְעָבוֹן, שֶׁנֶּאֱמַר: ״וּלְיוֹסֵף יֻלַּד שְׁנֵי בָנִים בְּטֶרֶם תָּבוֹא שְׁנַת הָרָעָב״. תָּנָא: חֲסוּכֵי בָּנִים מְשַׁמְּשִׁין מִטּוֹתֵיהֶן בִּשְׁנֵי רְעָבוֹן

Da mesma forma, Reish Lakish disse: É proibido a uma pessoa ter relações conjugais em anos de fome, quer dizer, levar a vida adiante como se nada estivesse ocorrendo em torno de si, e para que não traga filhos ao mundo, durante períodos difíceis. Como está declarado: “E a Iossef nasceram dois filhos, antes que chegasse o ano da fome” (Bereshit 41 : 50). Era ensinado num baraita: No entanto, aqueles que não tiverem filhos poderiam ter relações conjugais mesmo em anos de fome, pois se o casal desejar muito ter filhos, esta motivação estaria justificada na mitzvá de ser frutífero e se multiplicar.

Outro sábio, o rav Avin, que viveu no início do século IV, tinha um entendimento ainda parecido.

É encontramos, na outra versão do Talmud, o Talmud Ierushalmi (ou de Jerusalém), onde ele cita um verso do Livro de Ióv: “Desperdiçados por necessidade e fome, fogem para uma terra árida”, e ensinava que a intenção do verso seria dizer:

“Quando houver falta no mundo, faça sua esposa se sentir sozinha.”

Esses dois ensinamentos encontraram seu caminho no imaginário das figuras religiosas posteriores, ao pensarem a lei judaica normativa.

O primeiro conceito, foi codificado na obra: Shul'han Aru'h (uma mesa arrumada), publicado pela primeira vez em Veneza em 1565.

E o segundo, foi adicionado por meio de um comentário, escrito pelo rabino polonês Moshe Isserles, que faleceu em 1572 (e que já havia fugido de uma pandemia naquele ponto) -e a regra dele passa a ser considera "obrigatória" aos europeus (Ashkenazim):

שולחן ערוך אורח חיים 240:12

אסור לשמש מטתו בשני רעבון אלא לחשוכי בנים [פירוש מי שאין לו בנים] הגה וע"ל סי' תקע"ד ס"ד וה"ה בשאר צרות שהם כרעבון [ירושלמי דתענית]

ירושלמי תענית א

א"ר אבון כתיב (איוב ל) ’בחסר ובכפן גלמוד’ בשעה שאת רואה חסרון בא לעולם עשה אשתך גלמודה

“Isso se aplica” - ele comenta - “a todos os tipos de desastres naturais, pois são como 'a fome”.

INTIMIDADE DURANTE COVID

Foi com esse "pano de fundo" tradicional, que a questão da relação sexual durante a pandemia de COVID-19, foi feita em diversos lugares pelo mundo.

A resposta dependeria da razão por trás da compreensão que estaria por trás da proibição talmúdica, e para isso, compreensão do contexto é importante.

A declaração do sábio Reish Lakish foi citada como uma das várias 'decisões rabínicas' que proibiam uma pessoa de 'se separar da comunidade', durante um desastre natural.

Seguindo Reish Lakish, o Talmud acrescentou que: “quando a comunidade estivesse sofrendo profundamente, uma pessoa não poderia dizer:“ Eu irei para minha casa e comerei e beberei, e a paz esteja com você, minha vida”.

Em vez disso, “a pessoa deveria ficar angustiada junto com a comunidade. Como descobrimos com Moshe, nosso professor, que ele estava angustiado junto com a comunidade.”

Então, a relação sexual durante um desastre natural, sugere um nível de falta de empatia, ilustrado por meio da busca por prazer pessoal, que não estaria em consonância, com o sofrimento comunal paralelo.

E foi assim que o comentarista medieval francês conhecido pelo apelido Rashi (rabino Shlomo ben Itzhak, 1040-1105) entendeu a proibição, comentando que durante uma fome:

“A pessoa deve se comportar como se estivesse sofrendo - mesmo que não esteja realmente”, quer dizer, mesmo se por acaso não estiver.

E este também foi o entendimento de um comentário, feito por sobre o comentário do Rashi, da parte do rabino Eliahu ben Abraham Mizrahi de Constantinopla, (1475-1525); dizendo que o motivo da proibição seria que:

"A pessoa não deve simplesmente 'aproveitar a vida', enquanto o resto do mundo sofre - estando absolutamente indiferente"

(Mizrahi comentando Bereshit 41 : 3)

Como rabino Tahan apontou, o comentário medieval sobre o Talmud conhecido como Tossafot (acréscimos) explicou que, abster-se de relações sexuais durante uma fome, era considerada uma "ação piedosa" sem dúvida, mas não era obrigatória no sentido estrito do termo; e além disso, durante algo como a COVID-19, a maioria da população não estava tecnicamente "em sofrimento."

O rabino Tahan, portanto, decidiu que não haveria necessidade de impor uma proibição para um casal manter relações sexuais durante a pandemia, independentemente se pretendiam ter filhos ou não.

Mesmo rabinos de seitas fanáticas, como Nahman Steinmetz, da comunidade de Skverer Hassidim em Nova York também deu permissão para os de seu grupo, assim como o rabino Asher Kleinman de Flatbush.

(Ver Steinmetz, Sefer Ateret Nevonim , 379-383. Kleinman, Bigdei Hamudot , 286-288.)

COMO A PROIBIÇÃO FOI ENTENDIDA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL?

A questão de saber se seria apropriado que um casal mantivesse relações sexuais durante um desastre natural, também foi questionada sobre um de desastre - digamos - mais artificial: Quando uma guerra fosse declarada.

Em 1940, o rabino Israel Alter Landau (1884-1942), que era o Chefe da Corte Rabínica da cidade de Edeleny, no norte da Hungria (em iídiche, chamada Edelen), foi questionado se sob aquelas circunstâncias (que na época eram, dos Húngaros apoiando as potências do Eixo e se unindo aos Nazistas): A proibição talmúdica vigoraria. Ele disse:

“Como resultado de nossos muitos pecados, esta é uma época de grandes dificuldades para Iáacov e Israel. Israel é escravizado na maioria dos países [na Europa] e também aqui [em Edeleny], tanto física quanto espiritualmente. Somos obrigados a trabalhar muito, assim como foi no Egito. Temos que consertar as estradas, e em muitos lugares as Ieshivot e mikva'ot [os locais para banhos rituais] foram fechados ... e por causa de nossos muitos pecados, existem novos decretos contra Israel a cada dia. Que HaShem tenha misericórdia de nós, e que possamos ver Sua libertação muito em breve. Como resultado destes fatos, parece apropriado a todo marido judeu, que se afaste fisicamente de sua esposa, e não se envolva em relações conjugais, mesmo que ele próprio não esteja em perigo, pois ainda seria uma época de grandes dificuldades para Israel...

Mas sua longa responsa foi maior que estas elaborações iniciais.

Ele concluiu no final, que não havia necessidade de legislar de modo estrito de se proibir relações conjugais, embora cada pessoa devesse decidir por si mesma. Ele diz:

“Porque o sábio tem olhos acima de sua cabeça” - (Parafraseando Kohelet 2 : 14 ).

O rabino Landau faleceu de causas naturais em 1942; sua esposa Rahel e vários de seus filhos adultos, infelizmente foram assassinados pelos nazistas em 1941 e 1942.

O LIVRO MAIS PESSIMISTA DA LITERATURA HEBRAICA

No entanto, durante a Primeira Guerra Mundial, houve uma regra rabínica que de fato proibia as relações conjugais.

Ela foi publicada em 1916 por Shimon Pollak, que vivia em Waitzen (hoje Vac na Hungria, cerca de vinte e duas milhas ao norte de Budapeste).

Em um pequeno livreto chamado Kol Haramah Vehafrasha - קול הרמה והפרשה - ele revisou a terrível situação em que os judeus se encontraram na Europa Oriental atingida pela guerra. Ele disse:

… Considere os muitos problemas terríveis, os golpes, a espada, o assassinato, a perda e os incêndios, tudo isso consumindo as mulheres de Tzion, os incontáveis ​​jovens nas cidades judaicas que foram devastadas, e os jovens que são enforcados pelo inimigo; para não mencionar os idosos e as crianças executadas. NUNCA PODERÍAMOS TERMINAR O LUTO POR ELES... e então, existe a profanação do Shabat, a ingestão de alimentos não-kasher, que milhares e milhares de pessoas cometeram... e há as mulheres, que não sabem o que aconteceu com seus maridos, e o muitos filhos que dependem deles, todos os quais, vagam sem trégua, com seus pés cansados ​​... eles não sabem o destino de seus pais nem de suas mães, de seus filhos ou de suas filhas, nem sabem de seus irmãos e irmãs. Onde eles estão vagando? Eles ainda estão vivos? ...COM CERTEZA, PORTANTO, EXISTE SIM UMA PROIBIÇÃO TOTAL E ABSOLUTA DE SE TER RELAÇÕES SEXUAIS!

Shimon Pollak. Kol Haramah Vehafrasha. Waitzen 1916, 31.

Este foi, certamente, considerado um dos livros mais pessimistas que já surgiu na literatura judaica europeia, pois enquanto o próprio profeta Irmiahu (que recebe a atribuição do Sefer Ehá o chamado "livro das lamentações") falando da destruição de Jerusalém, o rabino Pollak relatava não "um triste passado judaico", mas um triste futuro.

A obra foi considerada tão sombria, na verdade, que nela não havia lugar para nenhuma 'nova vida' judaica.

O REBE DE MUNKACZ DISCORDA

O rabino Hai'im Elazar Spira (1871-1937), que era chefe do Tribunal Rabínico de Munkacz (hoje Mukachevo) no oeste da Ucrânia, também se manifestou e abordou a questão, numa obra publicada em 1930.

Ele observou que durante e após a Primeira Guerra Mundial a questão da proibição das relações também havia surgido, mas tinha sido permitido.

Uma das razões para se permitir, era dizer que a guerra e os problemas posteriores que dela resultam, os quais sem dúvida também se abateram sobre o povo israelita (incluindo o levante Bolchevique) pareciam igualmente intermináveis.

Então, se fosse por questão de surgirem no mundo tristeza e dor, seria necessário proibir as relações conjugais “para todo o sempre”, o que seria claramente impróprio.

O rabino Spira também escreveu que ouviu falar de “um certo líder (de uma comunidade judaica europeia) que determinou que, as relações conjugais eram absolutamente proibidas durante a guerra [falando da Primeira Guerra Mundial]”.

E então vem esta passagem notável:

Isso me fez soltar uma gargalhada! Daquilo contra o que este velho (alguém perto dos oitenta) tinha advertido, e do que ele legislou para seus filhos. Isso se transformou, para todos nós (aqui em nossa comunidade), em motivo de riso. Quando soubemos disso, nosso coração afundava pois esta sua decisão não tinha qualquer fundamento, e seria sequer terrível continuar a falar sobre tal coisa. Talvez, muita coisa estivesse oculta aos olhos e do pensamento daquele velho. Que o Mestre [Divino] o perdoe! - [Parafraseando o Talmud, tratado de Sanhedrin 99a.] - Mas mesmo assim, ele deve receber certo respeito. Mas, no entanto, a halahá prática é que - os céus nos proíbam - se nós concordássemos com tal proibição!

Embora o rabino Spira não tenha identificado o tal “velho” (termo que mostra o quanto o desprezava, embora fosse certamente um outro rabino) cuja decisão ele tanto menosprezava, com quase certeza, ele estava falando do rabino Pollak de Waitzen!

Veja as opiniões do rabino Hai'im Elazar Spira, no seu Nimukei Orah Hayyim [publicado como, Legal Descisions on Orah Hayyim] (Nova York: Edison Lithographic, 1930), (versão Hebraica) # 574, 106. Se vê que, o pessimismo do rabino Pollak foi rejeitado, mesmo numa época em que a condição judaica parecia muito mais desoladora do que jamais em toda a História.

INTIMIDADE DURANTE UMA GUERRA EM ISRAEL

No volume onze de sua responsa, o rabino El'hanan príncipe de Mahon Meir de Jerusalém, abordou outra questão que surgiu a partir da interpretação da passagem do daf Iomi de hoje:

Em Israel, um casal poderia ter relações sexuais durante uma ofensiva militar?

Aqui está a passagem de abertura:

Num momento em que há grande perigo para a Casa de Iáacov, enquanto nossos inimigos estão costurando o medo e a preocupação entre nosso povo, e nossos soldados estão arriscando suas vidas para restaurar a paz e a segurança em nossas fronteiras, e lutando com todas as suas forças para derrotar 'aqueles que se levantam para nos destruir', e muitos estão lutando em território estrangeiro, surge a questão de saber se um soldado casado, que estiver de licença, poderia ter relações conjugais. Na verdade, o mesmo poderia ser perguntado sobre qualquer civil: Seria permitido ter relações conjugais numa época em que estamos em guerra e em perigo mortal?

תורה תמימה בראשית 41:50

ונראה באור דבריהם, דבאמת לאיש שהוא מסובל בצער הרעב אין סברא להוסיף צער במניעת תה"מ שנקרא ענוי [ע"ל ס"פ ויצא], אלא רק למי שאין לו כל צער ודאגה מחמת הרעב, כמו עשירים גדולים ובעלי אוצרות תבואה וכדומה, כמו יוסף, להם ראוי להשתתף עם הצבור בצער זה תמורת צער הרעב שאין מרגישים בו

Tendo estudado a página de hoje do Talmud, esta é, sem dúvida, uma pergunta perfeitamente razoável. Ela lida com a questão da Empatia comunitária.

Sua responsa é uma leitura fascinante.

Cita, por exemplo, a opinião da obra Torá Temimah (Bereshit 41 : 50 ) que escreve que, a decisão só se aplicava aos ricos, pois geralmente eram isolados de problemas que afetavam a comunidade.

Mas para uma pessoa que já estivesse pessoalmente familiarizada com o sofrimento do momento - como um soldado - “por que” pergunta o rabino Prince “seria necessário aumentar sua dor?”

Depois de citar muitas autoridades tolerantes, o rabino Prince também determina que, de fato, durante uma ofensiva militar, civis e soldados israelenses teriam sim permissão para viver sua intimidade conjugal.

Embora à primeira vista essa pergunta seja um pouco 'incomum', espero que você note que, 'em seu cerne' esta reflexão serve de lembrete, de que o povo de Israel DEVE compartilhar os fardos da vida, ou pelo menos expressar Empatia.

Para os que vivem fora de Israel, apenas ler o Daf de hoje do Talmud é uma boa maneira de lembrar que, enquanto nos sentamos confortavelmente, todos os dias, os soldados das Forças de Defesa de Israel se sacrificam pela segurança de todos.

A segurança deles deve sempre fazer parte de nossas lembranças, reflexão e reza.